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sábado, 15 de dezembro de 2012

Dentro e fora da Matrix

Clarissa querida...

Bem, você tocou num ponto importante. E acho que o fez de modo provocativo, quase me dando a isca para uma contradição (estou aceitando os riscos). Na verdade, não posso dizer muito do “destino”, porque ele só me parece perfeitamente traçado, no sentido de fazer algum sentido, a posteriori, jamais a priori. Isso significa que, sim, eu consigo acreditar num “destino”, mas apenas como organização nossa, como construção nossa, não como um dado intrínseco à vida humana ou à biologia humana. A vida, em si mesma, com todos esses átomos e componentes químicos tamborilando de lá para cá, ainda não me parece fazer sentido algum. É a minha mente que confere sentido a tudo e que, provavelmente, traça destinos, cria deuses e fantasias para que tudo seja confortável (de fato, seria insuportável viver num mundo em que as coisas não fazem sentido).

Assim como você (mas com uma ligeira diferença), sou declaradamente de todas as construções mentais humanas, estejam elas no terreno da fantasia ou não. Não posso esperar encontrar um bruxinho como o Harry Potter por aí, mas admiro a fantasia envolvida. Ela nos diz sobre tanta coisa e, por isso, revela muito de nossas intenções, de nossas fragilidades, nossos medos, enfim, temas humanos, todos eles reais, dissolvidos em fantasia (fantasia que, a depender do momento, pode se tornar tão real quanto essa xícara de chá que está na minha frente). Tudo isso num simples Harry Potter? Sim, mas também na “Bela Adormecida”, no “Homem Bicentenário”, nas religiões, nas novelas, enfim. Parece que nosso sistema cognitivo é tão complexo que o real torna-se limitante, precisamos mesmo abrir as fronteiras para colocar à mesa tudo de que somos capazes.

É como se vivêssemos a dualidade representada no filme Matrix. Ou seja, dentro dela as possibilidades são virtualmente infinitas. Mas há sempre reflexos fora dela, reais, bem reais, que estão atrelados ao que se passa dentro da Matrix.

Quando você diz que sua realidade não precisa necessariamente estar em relação com os dados objetivos, e que – de certa forma – o que ocorre em sua mente já é um tipo de realidade para você, pergunto: como são possíveis instâncias éticas, políticas dignas, a partir dessa base conceitual? Como é possível um Direito nessa linha de raciocínio? Como fruir o sabor sem alguma presença do saber?

São questões que ficam.

Parece-me claro, no entanto, que a temática não se dissolve assim, fácil. Por exemplo, em epistemologia, fala-se com certa frequência da construção da objetividade.

O que isso diz para você?

Beijos,
G.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Real: um delírio?

Querido amigo,

Bom conversar com um cético. Na verdade, é sempre bom conversar com você, mas especialmente bom por ser cético. Acho que é mentira esse negócio de você não acreditar em destino, rs. Você acredita mesmo, completamente, em seu ceticismo? Concordo contigo sobre a falta de controle nossa e talvez da vida sobre a nossa vida. É que uma complexidade tão bela como a vida ser jogada, assim, ao acaso das consciências, parece um desperdício, às vezes. A você não parece?

Bom, quanto a mim, sou declaradamente crente em todas as coisas do universo que são e não são nomeadas (Papai Noel, pai de santo, Deus, espíritos e santos de toda a ordem, gnomos, destino, astrologia, carma, energia, arrepios...). Gosto do mundo limiar, das fronteiras, daquilo que pode ser sentido, mas não tocado; intuído, mas não comprovado... Adoro o status do quase, do talvez, do poderia ser. E acho mesmo que fantasia é um tipo de realidade, das mais profundas e ricas. Realidade, para mim, não significa correspondência com dados objetivos. Algo que eu penso já é realidade em alguma instância dentro de mim.

Sei que Kant deve estar rindo de mim nesse momento. Pensar e conhecer são processos diferentes para o filósofo, um defensor da verdade de correspondência entre os fatos e pensamentos. Com toda minha reverência honesta ao ilustre pensador, permito a mim mesma considerar desnecessária qualquer correspondência dos pensamentos com dados objetivos para atingir a verdade ou a realidade. O que é real dentro de mim é real para mim, e isso, me basta.

Um beijo da amiga Clarissa

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Navegando, sendo navegado ou o quê?

Cla, Cla, Cla...

Não sei se a vida é mesmo tão condutora como, às vezes, tendemos a pensar. Acho apenas que temos de nos conformar com a maior parte das coisas que nos acontece e sobre a qual não temos o menor controle. E adaptar. Porque, no mais das vezes, esse nosso discurso não passa de autoconsolo, no sentido de que precisamos encontrar (e fabricar) algum sentido nas conchinhas que o mar da vida nos traz a cada nova onda.

Não sei, Clarissa! Acho o ser humano fantasticamente mentiroso. E, quando digo mentiroso, digo-o para indicar um sentido positivo do termo, sem o qual – provavelmente – não suportaríamos um dia sequer. Aquela coisa necessária de acreditar em destino, sabe?! De crer cegamente que há algum propósito em cada coisa que fazemos ou que nos acontece...

Enfim. Você tocou num ponto fundamental. A mudança. O trânsito. A passagem. De um estado a outro. Cortando elos. Estabelecendo novos.

Diga-me: será que há mesmo algum propósito nisso tudo?

Sou cético, você me conhece, embora me considere “aberto” para muitas possibilidades. É que eu não sei. Não sei mesmo!

Beijão!
G.

sábado, 10 de novembro de 2012

Ventos e quadris

Gus, Gus, Gus...

Acho que esse orgulho todo pode fazer com que, sem perceber, a gente acabe diferenciando as pessoas em termos de saber... Eu prefiro ficar atenta às vaidades desta ordem, mas não é exatamente um conselho para você, é mais um alerta para mim, de fato.

Bom, como você sabe, comecei a trabalhar como psicóloga na Universidade Federal do ABC. Sabe, eu tinha muito medo de me ver como pertencente a algum mundo que não o universitário, que é onde minha alma se derrama. E, veja bem, pertencente durante 40 horas semanais! Mas você deve estar se perguntando, "ué, mas ela não está trabalhando dentro de uma universidade?" Pois é, meu amigo, mas estou do lado de lá (ou de cá?). Eu atendo os alunos e professores, o lugar é completamente outro.

Claro que isso tem a ver com o papo de cima, de orgulho de pertencer ao grupo dos inconformados... Eu tinha (tenho ainda) um medo honesto de perder minha identidade. Que coisa maluca, não? A identidade da gente não deveria poder ser perdida. Mesmo quando estamos diferentes, tudo deveria fazer parte de um processo de identificação dentro de uma grande e mais definitiva identidade, que é a do ser Clarissa. Mas a verdade é que cada grande mudança que corta significativos cordões umbilicais é sentida como uma perda de identidade por mim. Como se um pedaço da minha história fosse arrancado e outro precisasse de lugar, meio de sopetão, tentando caber no vão das poltronas que já estariam ocupadas, chegando com quadris bem largos e espaçosos.

 Pois é... sinto que os ventos são outros. Devo fazer uma reverência à força de condução da vida. Ela tem me dobrado...

Um beijo especial para ti da amiga Clarissa




domingo, 4 de novembro de 2012

Inconformado e orgulhoso! Mas e daí?

Pois é, Clarissa! Fui desmascarado! Tenho não apenas orgulho dessa inquietude que me é peculiar como, fazendo um exercício mental agora, acabo de perceber também que em minha lista de “heróis” não consta nenhum nome que não tenha essas características. Ao que tudo indica, eu seria um péssimo terapeuta, porque acredito que a dor e o sofrimento de ser assim é preferível à alegria e ao contentamento, por vezes ingênuo, que caracteriza o outro lado. Costumo até brincar que tenho medo de gente muito feliz. Porque, quando me vejo diante dessas pessoas, não sei bem discernir se estou diante de um “santo” que conseguiu superar a tristeza em virtude de alguma evolução espiritual; ou se estou cara a cara com alguém que simplesmente não percebe as sutilezas da vida.

O “olhe ao redor, estranho, não?” me diz isso. É o “grito silencioso” de alguém que percebeu o óbvio: tem coisa estranha nisso aqui! Se dá trabalho ser assim? Não tenha dúvidas. Mas eu não trocaria essa loucura consciente por qualquer forma de contentamento inconsciente. Não sou daqueles que pregam que, na vida, o importante é ser feliz. E muito menos daqueles que acreditam que a “evolução” em nosso caminho se dá por aceitação.

Enfim, Clarissa! Há tanta coisa para pontuar. Mas deixo estar.

Em minha lápide, pode ter certeza que estará escrito assim: aqui jaz um inconformado!

No fundo, não deixa de ser um preceito budista: viver é sofrer!

Beijão,
G.  

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Náufraga à vista

Querido amigo,

Vou evitar me desculpar por ausências e essas coisas. Acho que tenho me escondido de mim mesma. Como eu já comentei em outro momento com você, não tenho talento para escolhas, mas tampouco me vejo com talento para viver o dia a dia como ele se apresenta. Minha alma gosta do movimento, ela até acha que prefere as mudanças à estabilidade, mas quando a desordem das novidades surge, um recolhimento com cara de caos se instala sem avisar. Ou talvez até avise, dando uns sinais de que algo vai ser diferente. Na verdade, eu não sei dizer "não" para a vida. Ela me desafia e eu respondo positivamente. Ela me convida e eu vou como quem não tem outro caminho. Parece até uma falta de escolha...

Eu queria voltar a falar sobre as almas enfermas, aquelas que precisam "nascer duas vezes" para aprender a se adaptar e ver o mundo com certa leveza e aceitação. Não sei se me enganei, mas senti um certo orgulho embutido em sua fala ao se assumir como pertencente a esse grupo. Senti que você admira a inquietude, a criatividade, o jeito inconformado que acaba fazendo história. De minha parte, essa condição me traz mais angústia e desadaptação que admiração. Claro que tem uma parte de minha alma que sente essa pitada de orgulho, mas com o passar dos anos, com a convivência com algumas pessoas, fui entendendo que não é nada assim tão especial, é só um tipo de estrutura psicológica, com seus desafios próprios. Não é para se reclamar, claro, só pensamentos, meu caro, pensamentos.

Estou a ler Charles Taylor, Uma era secular, e o que posso dizer é que ficamos mais complexos a cada dia. Está mais difícil definir os seres e a sociedade. Isso ou aquilo não diz quase nada da gente. Precisamos de "muitos issos e aquilos também". Sei lá, acho que acordei com medo da imensidão da vida. Me ajude, amigo.

Um beijo com carinho da Clarissa.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Olhe ao redor! Estranho, não?!

Minha querida amiga,

Andei ocupado demais comigo mesmo esses dias e, curiosamente, achei isso terrível. Na verdade, essa coisa toda tem a ver com o que você trouxe à tona. Alguns têm uma facilidade incrível para viver neste mundo. Outros, grupo em que me incluo, têm alguns problemas. Algumas dificuldades estruturais.

Curioso. Isso me lembra uma pichação que vi há muitos anos no muro do cemitério do Araçá. Passando por ali de carro, e em meio a um trânsito caótico, ambulâncias gritando, mendigos deitados nas calçadas e gente cansada voltando do trabalho, o comentário numa das paredes me chamou a atenção. Dizia apenas isso: olhe ao redor!! Estranho, não?! E era poético. Era crítico. Deu-me a certeza, no momento em que li aquilo, que a pessoa que havia pichado tinha uma alma como a minha. Inconformada por natureza, com dificuldades peculiares para se adaptar a um mundo estranho (com aparência de normal), enfim, uma alma reflexiva.

Para esse tipo de alma, as conveniências sociais podem até, de vez em quando, ser toleradas e obedecidas. Mas não se engane: de tempos em tempos, há um grito que sai lá de dentro. Um surto. Uma irracionalidade imediata. E é daí que saem as boas poesias, as grandes artes, as músicas inesquecíveis, os pensamentos irrefreáveis.

No fundo, creio que o mundo precisa dos dois tipos de pessoas, sem dúvida alguma. Mas isso não se escolhe (pertencer a este ou àquele grupo). Só se aceita, com todas as dificuldades de comunicação que essa heterogeneidade nos traz às vezes.

Ai, querida Clarissa, há tanta coisa entre o céu e a terra que, realmente, nos sentimos perdidos na maior parte do tempo. Não sei se o James tem razão. E nem sei se eu mesmo tenho alguma. Escrevo o que sinto, o que observo, o que me chama a atenção e, inquestionavelmente, o que me muda – de dentro para fora e de fora para dentro.

Não sei que rumos nossa conversa tomará daqui para frente. Mas vou aguardar. Tem sido muito proveitoso dialogar com uma alma inquieta e excitante como a sua.

Beijos,
G.